quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Oralidade

ela permite a entrada
debaixo de seu próprio nariz
não há parte mais íntima que o céu da boca.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

dizer "eu te amo" é mais difícil que desvirginar uma moça.

sábado, 28 de novembro de 2009

Todos precisam de alguém, pois viver sozinho é ameaçador. É um temor de acordar e não ter a quem desejar bom dia; sentir o calor do meio-dia tomar seu corpo, e não ter a quem dizer que está passando mal de tanto calor; e, quando a noite chega, tossir e não ter a quem se silenciar.
Mas ao mesmo tempo, precisamos da solidão. O silêncio ordena o pensamento, a paz. Todo relacionamento humano é conflito, em todos os sentidos. Descobrir. Intenção, contenção de gestos, até que um prossiga numa sucessão de soluços.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

condição

se pudesse, evitaria o plantio de árvores. elas tomam o espaço que há entre nós.
se desse, o mundo era plano. não daríamos voltas e sempre nos encontraríamos.
se quisesse, e quero, faço agora mesmo um acordo entre palestinos e israelenses. eles param de brigar e deixam a gente aqui fazer aquela tão sonhada viagem pra Faixa de Gaza em paz.
se fosse possível, faria o impossível. mas aí não téríamos mais tempo para nós, tamanho seria o assédio da imprensa ao querer falar com o cara que fez o impossível!
se o ser humano pudesse voar, mesmo assim não faria isso. pegaríamos um avião vazio e confortável pra irmos pra qualquer lugar.

mas as condições, se não fossem tão difíceis, não estaríam nesse texto. Que é, assim, pra sonhar.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

palavra

Estou impedido de prosseguir num relato. As palavras não suportam o que não pode ser dito, pois querem existir. Diante de quem me quer ouvir, eu não quero ser visto. As impressões – por eu ser só um ruído quando me posto na frente daqueles olhos – são somente avisos, sugestões para as quais não se dedica um minuto de pensamento.
Entre nós dois, não deve existir tema que faça ambos desgastarem-se numa reflexão sem fim. Tudo deve parecer ter certeza; não precisam, nós, de certeza, então? O conflito será cuidadosamente controlado; e o que virá – lágrimas, sorrisos, soluços e silêncios – durará até o último copo da noite.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Catarina um

Catariana é o motivo disso tudo, mas do avesso. Pois é o fato de ela não estar nem aí para o que escrevo que me faz escrever aqui. Se um dia Catarina resolver dar bola pra estas linhas, perco a motivação. E perco, de quebra, Catarina.

Mas seu nome é seguido por Aragão, o que, ao meu ver, não muda em nada o que disse anteriormente sobre Catarina. E foi pouca coisa. Falei apenas de seu descaso com relação ao meu texto, ao meu medo e ao meu prazer. Ela está se lixando.

Pois jamais retorna os meus e-mails.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

seu sonho

Silêncio. Quietou-me sem querer, aboliu de mim a ternura comedida e, esbravejando, inundou de não se sabe o que tudo o que é vítreo. Sem quebrar nada, sumiu com tudo o que queria ser visto. E é do vidro que me fere, pontiagudo e sedutor, que partem mil afagos. São de mentira, as carícias, o amor e os aplausos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

untitled #1

É um êxtase que em sua incontinência
Faz provocar um sufoco abafado de libertação
É e deve ser raiva!
Pois é aquilo que só existe no âmbito da destruição
Só pode quando não se quer que se possa mais coisa qualquer

Aparece uma mulher
Pobre de tanto que se entregou aos outros
Jamais segurou um diamante que tivesse sido escolhido para ela
E nunca segurou nada que a ela tivesse sido entregue
Não há presente pois ela o é

Toda simulação é ruído
E a realidade precisa ser surda!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Não matem Svetlin

À tarde era difícil alguém bater à nossa porta. Mesmo quando um de nós estava em casa no período entre uma da tarde e sete da noite, raramente podia ser surpreendido por uma visita. De quando em quando alguém lá do Sonic dava as caras, carregado de cerveja, pois estava off. Tão esporadicamente o carteiro aparecia, perguntando se ali moravam os russos, ao que sempre respondíamos que não mais. E, como o cometa, era Svetlin, nosso supervisor búlgaro de quase dois metros de altura e sorriso engessado.

Era por isso que, naquele dia de sol, raro naquele inverno que nos surpreendia com três ou quatro graus Celsius negativos, eu estava de folga do trabalho e lavava a louça com o rádio ligado bem alto. E irritado, porque nossa condição miserável nos obrigava a lavar os descartáveis, que estavam já rachados. Era um prato vermelho de plástico pra cada um, acompanhando o kit também um garfo e uma faca tortos e um copo de acrílico; só. Não esperava ninguém àquela hora, iria dar uma geral na casa, exceto no quarto da Leidy, que era de uma bagunça tão complexa quanto assustadora.

Enquanto tentava desentupir a pia da cozinha - coisa que jamais conseguiríamos – e retirar a água parada com a ajuda de uma caneca, não ouvi a campainha, mas os murros que davam na porta. Primeiro, olhei, lá da cozinha mesmo, a não vi ser algum através da estreita janela ao lado da porta. Voltei ao serviço, e voltaram junto os murros. Larguei caneca, água suja e fui ver o que era, afinal, por se tratar de casa de alvenaria, feita de madeira, qualquer pássaro andando no telhado ou cutucando algo lá em cima já era motivo para sons irritantes. Mas não era pássaro, senão Svetlin. Que voltava correndo do carro, pois tinha esquecido de pegar alguma coisa.

Seu inglês era fácil de entender, apesar do forte sotaque, que o fazia pronunciar os “erres” de maneira engraçada. Puxava tanto os “erres” que parecia aquele maluco do Galvão Bueno narrando um jogo de futebol. Logo tratei de ensinar-lhe a dizer “Ronaldinho”, “Rivaldo”, etc. Era assim que, na casa, adotamos como bordão a expressão “call me tomorrrrow”, assim mesmo, puxando o “erre” lá do fundo. Fora isso, era um cara legal, que atrasava nossos pagamentos e que, quando atendia aos nossos telefonemas, respondia, com prestaza, “call me tomorrow”, o que desencadeava numa seqüência interminável, nos dias seguintes, de telefonemas e “call me tomorrows”.

Naquele dia, Svetlin precisava de uma mãozinha. Os outros estudantes latino-americanos que também moravam e trabalhavam em Pineville haviam fugido e agora que a casa estava desocupada, o búlgaro de sorriso engessado precisava fazer a mudança dos poucos móveis, para entregar a casa ao proprietário. Eram apenas algumas mesas e cadeiras, e alguns colchões e estrados, que deveriam ser reacomodados nas outras duas casas de estudantes latino-americanos que haviam restado, sendo uma a minha. Svetlin queria minha ajuda. Sim, o cara que estava com meu pagamento atrasado. E, agora, na minha frente, fazia chantagem me dizendo que iria deixar eu ficar com mais cadeiras.

Tive vontade de responder “call me tomorrow”. Mas somente comentei que eu estava ocupado, pois era a doméstica da vez. Ele insistiu, fez cara de coitado, quebrando, incrivelmente, o gesso de seu sorriso. Até que me ofereceu dinheiro... Pensei em propina, pois para nós, brasileiros, se alguém nos pede um favor e oferece dinheiro em troca, primeiro pensamos que se trata de safadeza. Mas não é. Svetlin disse que era justo me pagar, pois eu estaria trabalhando para a Hospitality, a empresa que “cuidava” de nós lá nos EUA e para a qual ele vendia sua “força”. Aceitei, não sem antes perguntar “how much?”. Ele voltou a engessar aquele sorrisão e respondeu “ask me tomorrow”. E fomos alugar um caminhão lá no centro.



continua...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

I left those shadows outside
Trying to remember if I still can drop out of this fucking place
It’s like if time could stop everytime I breathe
That’s why I’ll never change after all

Here all the walls to hide you
Cause I’m rounding your dreams
Looking for exact words to describe my fears

sábado, 1 de agosto de 2009

Mudança de hábito

Olha, certeza, certeza mesmo não posso garantir. Sabe, tem momentos de uma noite que simplesmente apagam em nossa memória, e aí você passa a receber um monte de versões do que pode ter acontecido, e fica preocupado ao saber que os relatos partem de gente que também sofreu algum tipo de amnésia durante a mesma noite que você, ou que beijou traveco pensando que se tratava de uma loirassa. É como se aquelas poucas horas de sua vida se tornassem um livro aberto, tipo aqueles que se fazem presentes em exposições de arte, recebendo canetada uma atrás da outra de um bando de gente que, na maioria das vezes, não entendeu porra nenhuma do que viu, mas não deixa escapar a oportunidade de prestar alguma homenagem pro artista e assinar em baixo.

Não que eu tivesse bebido. Não que eu tivesse me drogado. Longe disso. Mas acho que pelo menos uma dessas possibilidades foi a responsável pela minha súbita deficiência, a ser, não lembrar nada do que se passou entre as onze e meia da noite do dia 15 de julho – hora em que, de acordo com testemunhas, já fazia mais de meia hora que dizia que amava todo mundo – e as quatro da tarde do dia seguinte - hora em que, de acordo com testemunhas outras, eu acordava me queixando de forte dor de cabeça, culpando, com veemência, o travesseiro.

Ouvi uma porção de reconstituições do que ocorreu. É horrível não poder, nessas horas, duvidar da palavra do outro, pois você simplesmente ouve as pessoas contarem histórias ditas reais tão absurdas, surreais, inimagináveis e, muitas vezes, escatológicas tendo como personagem principal você mesmo, que ou você acredita, ou manda matar todas as testemunhas, fazendo calar para sempre essa poderosa voz que insiste em queimar seu passado ao longo das próximas gerações.

Mas o que dizem por aí é que, não contente com o fato de ter recebido uma dura da irmã-diretora lá do convento naquela manhã, quando me dirigia para o congresso, devido ao fato de ter chegado tarde na noite anterior, guardei o rancor no meu peito até não poder mais agüentar e, já presente no porão do Alemão, balada tradicional de Manaus, afaguei tudo o que de pior sentia a respeito da Igreja Católica e suas freirinhas com vodka, cerveja e tequila barata. Por volta das duas da manhã, apaguei. No caminho de volta, já dentro do celta que alugáramos dois dias antes, recuperei parcialmente o estado de vigília e, ao nos aproximarmos da entrada do convento onde estávamos hospedados, prontifiquei-me a insultar qualquer bata que me aparecesse na frente. Com o carro parado na frente da entrada que leva aos dormitórios, cumprimentei uma das irmãs e disse que, ali, ninguém estava alterado não, senhora! Conclui com a seguinte avaliação: vocês, noviças, precisam beber mais e, quem sabe, um p... desse tamanho!

sábado, 4 de julho de 2009

A minha vez

Decerto que jamais agirá daquela forma novamente
Pois não é simpático a tamanha manifestação de ignorância assim
E fará um esforço, nem que mesmo em vão, para recuperar aquele semblante
Que nunca teve, mas sempre imaginou, de quem responde à vida com um grande sim

Não fugiu, mas promete que será agora que o fará,
De uma excelente chance para escapar
Consta que diante daquilo que o fez recuar insistentemente durante too esse tempo
Surpreenderá com um grande golpe: não se escoderá atrás de sua cara moldada no cimento

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Início

Nessa época do ano, espero que minha retirada possa enfim me colocar por entre aquelas pessoas, mudas como nunca se viu, pois são mudas de tanto que gritam. No meio, manchado de terra em todo corpo, estou eu, tentando calar suas vozes.

Mas elas são várias; formam uma só, que invade tudo.

Até que um velho diz:

_ Domine esta porra!

domingo, 21 de junho de 2009

O gosto amargo persiste

A cena toda começa tendo eu de fundo, observando. Minha participação consistia numa observação, à qual eu me entregava com dedicação, tentando entender, inclusive, os motivos que me faziam continuar lá, e não desistir daquela porcaria.

Sim, afinal não me dava prazer algum persistir naquilo. A poucos metros de mim, eles dois se beijando; ela revirando os olhos e cravando as unhas nas costas dele que, à vontade, passeava com as mãos no corpo dela. Estavam um pouco bêbados. Mas nada que justificasse o fato de, por exemplo, terem se entregado um ao outro somente porque, bêbados, não tinham consciência do que faziam. Era algo além do efeito do álcool que os havia unido daquela forma selvagem.

Até que resolvi ensaiar uma saída. Ela percebeu, pois foi bem na hora em que abriu os olhos para conferir a hora em seu celular. Fez sinal para que eu esperasse, o que respondi, também com sinais, indicando que negativo, não poderia esperar. Ela então se despediu do rapaz, com um selinho, e deu-lhe seu copo cheio de vodka com guaraná. E veio até minha direção, sorrindo e descabelada. Satisfeita e suada. Como se tivesse morrido após uma vitória num combate e ganhasse a oportunidade de deus de viver novamente.

Eu, na minha condição de mero mortal, estava razoavelmente anestesiado. Sentindo-me bem, mas incomodado com a qualidade da bebida que estava segurando. Reclamei um pouco, dizendo que nunca mais haveria de retornar a ingerir coisa tão ruim assim novamente. Percebi, então, que dentro do copo, misturados ao gelo e à vodka, boiavam inúmeras partículas que logo puderam ser identificadas como restos de fumo. De algum jeito, uma bituca de cigarro veio parar no meu copo. O odor de nicotina, pensei o tempo todo, era do ambiente, ocupado em sua maioria por fumantes novatos, que mal sabiam como tragar. Foi então que ela deu uma gargalhada daquelas. Fiquei furioso; disse que podia morrer! Afinal, eu praticamente tinha comido aquela merda.

Minha condição de babaca sempre havia sido o elo que me unia a ela. Eu não sabia o que a fizera se grudar naquele cara, mas sabia bem o que a fazia depender de mim. Coisas como não perceber uma bituca de cigarro na bebida e, por isso, querer reclamar com o barman que o drink estava um lixo, faziam com que eu fosse para ela um personagem de algum romance. O Bruno, aquele que bebe vodka com gelo e um Malrboro dentro; que, não percebendo nada, continua bebendo aquela droga e, de nariz empinado, vai até o balcão e faz um diagnóstico desfavorável sobre a qualidade do que está bebendo.

No caminho até o estacionamento, ela tenta se lembrar o nome do cara que pegou há pouco. Diego, Cauê? Ricardo, ou será Pablo? Diz não se importar, afinal tinha sido bom. Eu não abria a minha boca, inicialmente porque estava muito ocupado retirando dela aquelas substâncias tóxicas que não desgrudavam de meus lábios. Depois, não abria a boca porque não queria mesmo. Ela, ao contrário, falava, falava e falava.

Quando avistei meu carro, quis ter certeza de que ela tinha condições de voltar dirigindo sozinha. Ela disse “e você! Bebeu também, pô! Não pode dirigir”. Expliquei que graças ao filtro do cigarro que estava mergulhado na vodka, boa parte havia sido absorvida, não sendo por mim ingerida. Ela riu e se despediu, com o abraço de sempre.

Voltei para casa, pensando na situação engraçada da noite. Mas depois, uma triste interpretação me fez reavaliar o fato. Durante toda a noite, o único sabor, ao qual minha boca se entregou, foi o de um cigarro que sequer pude fumar.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Testemunha

Encanei com uma frase que repousou em meus ouvidos durante essa semana:

"O perigo da vida é sermos a testemunha de uma decaptação, e não a vítima".

Creio que ela, na verdade, saiu de minha própria cabeça, enquanto eu voltava da faculdade.

E, pensando bem, assistir à cena tão forte, in loco, certamente é algo que nos causaria mais dor do que se fossemos quem sofresse a violência.

Mas diria ainda que, se por um lado isto representa um perigo, por outro não nos deixa de ser atrativo. Desejamos sempre ser as vítimas, mas resistimos ao máximo em abrir mão de nossa posição de voyeres...

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Amor colombiano

Custou muito para acreditar que, àquela hora, umas duas da madrugada de uma sexta-feira de inverno, eu estava jogado no chão, cercado por umas três latas de Budweiser, tentando convencer meu mais novo amigo colombiano a não sair pela porta e matar um cara lá da cidade. Eu não tinha condições diante da resistência de Cesar que, fazendo jus ao nome, imprimia uma teimosia digna de qualquer imperador. Com sua faquinha na mão, uma correntinha que segurava a carteira presa ao bolso direito, uns coturnos surrados e sua cara de mafioso reformado, Cesar dava longos goles naquela vodka barata, que naquela tarde havia sido usada como produto de limpeza para se lustrar a mesa da sala.

Eu usava o argumento segundo o qual bastaria qualquer ação estúpida dele para que fosse preso e, pior, se tornasse uma pessoa impedida de retornar aos Estados Unidos para sempre. Naquela hora, senti que, finalmente, conseguira impor-lhe uma condição no mínimo relevante. Aquele país tinha sido escolhido por ele para ser sua nação! Era ali, naquela cultura, que gostaria de viver, trabalhar, ter filhos e casar... Não, casar não! Mas faria dos EUA sua verdadeira pátria, amada e idolatrada cegamente. Enquanto Cesar gritava uns palavrões em espanhol, eu lembrava de quando ele me dissera que em poucos dias tatuaria, no braço esquerdo, o nome “Nevada”. É o estado onde está a cidade de Las Vegas. Cesar morou lá durante uns seis meses e sempre que alguma coisa de Pineville, a cidade onde morávamos no momento, o incomodava – desde as pessoas “burras demais por morarem numa cidade pequena” até “as árvores, retas demais” – ele reavivava Vegas em sua mente e começava a contar histórias da vida noturna da cidade do pecado. Dizia que eu deveria ir para lá com ele, pois em Vegas trabalharíamos nos divertindo e, no fim do dia, repousaríamos numa boate, deitados em divãs repletos de drinks e prostitutas.

Assim que o adverti do perigo de ser expulso do país, Cesar se aquietou. Estava bêbado demais, mas mais bêbado estava de paixão. Lady, sua amiga colombiana, estava lá em cima, no quarto, de portas fechadas, assim como sua cara, ouvindo música. Ela simplesmente não queria mais saber de nós. Ou melhor, de Cesar que, minutos atrás, havia explodido numa cólera de raiva ao saber que sua amada estava mesmo gostando de Omar, um rapaz de Nova York que havia se mudado para Pineville com o primo para tocar um negócio próprio. Sua loja de artigos relacionados ao hip hop era uma boa fachada para aquilo que realmente lhe dava lucros; nos fundos da loja, no único shopping de Alexandria, cidade vizinha a Pineville, Omar guardava os produtos finos, que eram vendidos para poucos endinheirados compradores. Eram camisas, sapatos, cintos, calças, jóias, todos importados da Europa e Ásia, muito caros e guardados com total zelo. Omar, filho de uma brasileira com palestino, sabia falar muito bem o espanhol e o português, tendo um pouco de dificuldade em pronunciar os “erres” deste último idioma. Mas, para mim, era interessante poder conversar em português com um nova-iorquino a respeito da Palestina. E, se a mim era algo inusitado de se ver, ainda mais numa cidade tão mínima como Pineville, para Lady, tratava-se de autêntico presente divino. A colombiana não falava muita coisa além de “hi, how are you doing?”, e mesmo assim, quando seu inglês demonstrava certo avanço, sequer ela podia compreender o que dizia. Seus únicos interlocutores eram eu, que me virava bem com ela, tentando entender seu espanhol; Cesar, por questões óbvias; e Pillow, seu travesseirinho, fiel guardador de segredos.

E é então que aparece Omar. Alto, meio gordo, boa-gente, trílingue, dono de um possante legal que, na Colômbia, seria Ferrari; cantor de hip hop, dono de loja, popular. Lady, finalmente, conquistara a America. Era a “mina” do Omar. Ela podia dizer a sua mãe que estava bem, pois agora alguém lhe dava carona para o trabalho e a buscava; e depois a levava para comer e pagava a conta; e lhe levava ao cinema e lhe pagava a pipoca, a coca e tudo mais. Alguém, que lhe pagava cinco dólares a hora em troca de alguns serviços domésticos, que, no entender de Cesar, eram desculpas para que Omar comesse Lady. Eu, no meio de tudo aquilo, aproveitava a finesse de Omar e não negava um convite sequer para que fosse até sua casa com a “dama”. É claro que com minha presença lá, não demonstravam qualquer possibilidade de ambos estarem juntos, mas eu fazia vista grossa mesmo assim. Jogava vídeo-game e comia arroz. Omar sempre tinha arroz em sua casa, feito no microondas.

Naquela noite, as coisas passaram do limite. É bom dizer que, um ou dois dias antes, Cesar havia confessado a Lady o amor que sentia por ela. Assim, uns dias depois da confissão, nos encontrávamos em casa, cansados de um dia duro de trabalho. Eu, na ocasião, estava largado no sofá, num estado profundo de imobilidade e saco cheio. Os dois vinham numa conversa tranqüila, até que Cesar explodiu. Afinal, como aceitar o fato de uma mulher, que tem o privilégio de ser amada por Cesar Plata de Toledo, recusar uma proposta de namoro assim, sem levar em conta a grandiosidade do acontecimento, a ser: Cesar Plata de Toledo te ama! Ela cometeu a infelicidade de não gostar dele tanto assim. Eram amigos, claro, mas Cesar queria mais que amizade e, não sei se é uma característica da cultura colombiana tamanha sinceridade, confessara querer fazer sexo com ela. Ela ficou sem reação. Foi se levantando, pedindo desculpas e, ao chegar à metade da escadaria que a levaria para o quarto, fez aquela filhadaputagem que só as mulheres sabem fazer com extrema perfeição: pisou em cima. Como se executasse um “fatality”, daqueles de se arrancar a cabeça do adversário, gritou: “sabe o Omar? Tá rolando algo entre eu e ele!”. Aí foi o fim. Na hora levantei e dei um abraço no meu amigo colombiano, que se desmanchava por entre meus braços. Eu assistira a um verdadeiro drama latino.

Essa confirmação, ao contrario do que pensei, não fomentou a face melancólica de Cesar. Muito me emocionou, aliás, e me fez lembrar meu querido Brasil, quando o colombiano se muniu de sua faquinha sem serra e de sua garrafa de vodka, abriu a porta e berrou para que todos soubessem que ele iria matar Omar. Digo que me recordou o Brasil, pois a cena era praticamente uma remontagem do agreste nordestino, ali, diante dos meus olhos, sendo Cesar o cangaceiro. Ele queria fazer justiça com as próprias mãos, pegando o “cabra” na ponta da faca e arrancando seu couro todinho, numa "lambida" só!Eu estava no chão, como disse anteriormente, e, evidentemente, não foram poucos meus esforços para evitar tudo aquilo, mas algo por dentro me forçava a deixá-lo ir em frente, simplesmente porque era tudo muito cômico. Cesar, magro demais, bêbado, com uma faca de passar geléia no pão, segurando a garrafa de plástico cheia de vodka, pronunciando palavras em inglês e espanhol, dizendo que iria até à casa de Omar, filho de brasileira com palestino, que canta rap, matá-lo. Lady apareceu e com uma tranqüilidade irritante (a mesma que impôs na conversa) disse para eu deixar Cesar ir embora. Mas eu simplesmente não podia, pois se ele não matasse Omar, poderia matar qualquer outro, ou mesmo matar a si mesmo. Ela contorceu o rosto e disse “Bueno”. Deixei Cesar livre.

Não se passaram nem vinte minutos, Lady já estava dormindo, eu estava na sala, aflito, e Cesar, esmurrando a porta, querendo entrar. Abri e não acreditei no que acabara de perguntar a ele: “matou quem?”. Felizmente, seus planos homicidas não foram levados adiante. Ele parara no posto de gasolina perto de casa para comprar outra vodka e depois voltou. Estava abalado, fatigado e apaixonado por Lady. Chorou.

Aprendi que nessas horas, quando um amigo perde as estribeiras, a melhor coisa a se fazer é beber com ele, no chão. Convidei-o a jogar-se no assoalho também. E lá, finalmente desarmado de sua faca, Cesar armou-se de rancor contra seu passado. Abaixou o volume do rádio. Desenterrou episódios antigos de sua vida, para justificar seu azar com relação às mulheres. Não se conformava com sua incapacidade de conquistá-las. Queria esforçar-se em entender os motivos que o levaram a sempre fracassar no amor. Nunca, contou-me, havia tido um relacionamento duradouro. Não era virgem, porém, pois sua condição de “rocker”, como dizia, o levara a situações realmente punks, botecos sujos em Bucaramanga, sua cidadezinha na Colômbia. Lá, saía com algumas mulheres, mas sem grandes expectativas de ter um futuro com alguma delas. Seu sonho era viajar pelo mundo com uma companheira ao seu lado. Assim, conheceria diferentes culturas, lugares e pessoas, descobrindo, também, os segredos da pessoa amada. Mas as dificuldades eram enormes; podia ir para onde quisesse, mas sozinho. Cesar, no auge de seus 27 anos, queria alguém para amar. Lady, com seus 22, estava lá em cima, sonhando com Omar.

Passado o susto, as horas e o efeito do álcool, Cesar e eu tínhamos entendido que aquela conversa representara o contrato que havíamos firmado, figurativamente. Ele me dissera coisas muito difíceis de serem ditas e eu as ouvira com atenção. Não havia intenção, da minha parte, consertar a vida do rapaz em poucos minutos. Ninguém poderia fazer isso por ele. Muito menos Lady. Achamos graça. O cara sai lá da Colômbia e vem para os EUA, para sofrer por uma mulher... colombiana. Eu, pelo menos, sofreria por outra que não tivesse nascido no mesmo território que eu. Aventurar-me-ia com uma gringa, e caso ela me rejeitasse, seria algo por si só magnífico em minha vida: levar fora de uma gringa. Mas isso não é o meu caso, e Morgan pode confirmar. Assim como a menina da melodia.

Lá fora

Minha fuga é invertida, vai na contramão.
O desespero me leva a sair daqui.
E não o contrário, e não me esconder atrás de paixão.

Tem que estar sempre lá fora. E o que é estar lá fora?
Para quem não tem referências. É sair.
Para quem obedece sempre aos mesmos estímulos. Alimenta-se de ciúmes. Alucina-se com delírio de outrem.
O que é estar lá fora?
É obedecer a ninguém?
Não. Mas é onde se dá a ação dos desejos. Lá fora. Aqui dentro, não. Aqui o espaço sempre será o da imobilidade.
Saiam! Calem seus medos, pois lá fora é a contradição!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Costume

Costume. Uma palavra que nunca lhe significou absolutamente nada. Mas, embora desse as costas para ela, na sua cabeça era mais do que certo que se tratava de um costume agir daquela maneira toda a vez que dava de cara com aquela menina da sala.

Ela vinha em sua direção, sempre com a intenção de dizer "oi". Mas ele queria sempre mais, muito mais, muuuito mais do que um "oi".

Então, como de costume, na hora em que ela se aproximou, ele disse:

_ Você é mesmo uma vadia!

Ela sorriu, pois (humpf!) era costume dele fazer assim.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Tomando o rumo

Numa conversa há um bom tempo, disse para alguém, não me lembro quem, que finalmente tudo estava entrando nos eixos e que, ao que tudo indica, logo mais estaria partindo. Faria dar tudo certo, e aquelas palavras, bem me lembrou meu interlocutor, jamais sairíam de minha boca. Estremeci. Só pude concordar e, pior, reforçar sua observação. "É, não sairíam mesmo". Cheguei a comentar também de alguns planos, alguma coisa sobre conhecer uma parisiense, me apaixonar por ela, depois de fazê-la se apaixonar por mim, e fugir para Marseille, onde eu finalmente poderia ficar numa boa, depois de um divórcio pacífico.

A pessoa com quem dividia tais sonhos incompatíveis com meu jeito de ser - incrivelmente abobalhado com as coisas mais bestas do mundo - era muito inteligente. Acendia um cigarro atrás do outro e sempre me oferecia um trago. Eu nunca os aceitei, menos pela saúde e mais porque acho que cigarro é uma coisa muito pessoal. Porque simplesmente é uma coisa fálica -trata-se de uma representação de sexo oral com o próprio pênis, seja o fumante homem ou mulher. No caso, lembro-me ainda com dificuldade, conversava com uma verdadeira dama. Ela e eu, e no meio o falo.

Entre uma tragada e outra ela me dava não conselhos, apenas "some tips", como dizia. Até que tomou cena aquela palavra. Ela surgiu em conjunto, formando uma expressão cruel, injusta, mas necessária para mim naquela hora. "Você é muito radical!".

Aquilo foi praticamente uma denúncia. Radical, eu? Dei com os ombros. Esperava, sei lá, "ingênuo", pois já ouvi isso tantas vezes quanto um padeiro ouve do cliente "saíu faz pouco tempo o pão?". Mas "radical", estranhei. Deixei as horas seguirem com meus relatos de antes. Afinal, tudo estava entrando nos eixos. E tudo indicava que logo mais eu estaria partindo. "Bruno, sempre que te encontro, você está indo. Indo, indo, finalmente indo... Para onde?" Ela queria saber para aonde eu estava caminhando. Apontei para a sua esquerda. "Pro viaduto?". Quem sabe? Mas eu confirmei que não. Eu disse que sair por aí sem rumo é coisa de quem não tem o que fazer; coisa de quem não tem objetivos na vida. Aí, depois de dar aquela tragada no cigarro, demonstrando como sua boca pode muito bem denunciar seus desejos mais reprimidos, ela resmungou. "Mas pra quê você precisa de mais objetivos?".

Respondi. "Para prosseguir". E prosseguir no quê?, ela intimou. E nesse jogo, perdi. Não sabia o que responder e, percebendo que uma resposta boa não viria de minha parte, ela não só ofereceu um trago do cigarro, como, ao receber o "não, obrigado" habitual, enfiou um em minha boca, colocou o fogo em sua ponta e autorizou. "Puxa!"

Dentro de poucas horas, eu iria partir, sabendo que isso seria um passo importante para progredir na vida, pois este era e sempre foi meu objetivo. Mas em meio a tantas palavras-chave de discurso de bom moço que eventualmente desce até a Augusta para se sentir mais homem, eu era mais um falante que não sabe nada de ter objetivos na vida. Eu era "radical" demais para querer saber dos desencantos que a fala da moça me trazia e me forçava a internalizá-los. Eu, que nunca fumara antes, não só estava fumando, como também estava - fato inédito! - profundamente deprimido e fumando, ao mesmo tempo! Senti-me grande. Muitos deprimidos que não se entregam, de jeito nenhum, aos sabores de um bom cigarro senten-se balançados quando pensam em quão mais belo seria seu estado de depressão se uma vistosa, quente e negra fumaça de nicotina tomasse forma ao redor de sua cabeça e fizesse com que sua triste expressão facial ganhasse um outro status, aos olhos de parentes e amigo, pois estes passariam a ver um rosto obscurecido pelo vício, pronto para a morte e em sintonia com o que se entende por "homem de merda".
Era assim que eu me sentia. Como se fosse um daqueles personagens de filmes dos anos 60, ainda preto e branco, que acendia um cigarro para elevar-se em sua própria condição desfavoravel.

"Talvez seu objetivo seja sair por aí mesmo, ouvindo os outros, registrando... Eu mesma adoraria fazer isso. Até acompanharia você, mas não posso. Aproveita sua radicalidade e esquece de boa parte de sua vida". Ela dizia isso quase que científicamente. Era sua posição de "reveladora da verdade" que me fascinava. Imaginava que, se tratando dela, de seu belo discurso e sua encantadora maneira de fumar, não importaria o que ela dissesse, eu daria como verdade!

"É, vou fazer isso!", eu disse. Joguei o cigarro no chão, meio que não querendo fazê-lo, afinal não sabia quando seria a próxima vez que voltaria a fumar, e reconsiderei. "Vou fazer isso, mas então este será meu objetivo!".
Despedi-me dela, beijando o rosto. A marca de batom ficou ligeiramente em minha face direita.

Ela pediu para que eu reclinasse novamente e, com o cigarro na boca, tentando tirar a mancha de mim, pensou em voz alta, creio eu. "Vai voltar assim... achando que ganhou a noite".