quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Não matem Svetlin

À tarde era difícil alguém bater à nossa porta. Mesmo quando um de nós estava em casa no período entre uma da tarde e sete da noite, raramente podia ser surpreendido por uma visita. De quando em quando alguém lá do Sonic dava as caras, carregado de cerveja, pois estava off. Tão esporadicamente o carteiro aparecia, perguntando se ali moravam os russos, ao que sempre respondíamos que não mais. E, como o cometa, era Svetlin, nosso supervisor búlgaro de quase dois metros de altura e sorriso engessado.

Era por isso que, naquele dia de sol, raro naquele inverno que nos surpreendia com três ou quatro graus Celsius negativos, eu estava de folga do trabalho e lavava a louça com o rádio ligado bem alto. E irritado, porque nossa condição miserável nos obrigava a lavar os descartáveis, que estavam já rachados. Era um prato vermelho de plástico pra cada um, acompanhando o kit também um garfo e uma faca tortos e um copo de acrílico; só. Não esperava ninguém àquela hora, iria dar uma geral na casa, exceto no quarto da Leidy, que era de uma bagunça tão complexa quanto assustadora.

Enquanto tentava desentupir a pia da cozinha - coisa que jamais conseguiríamos – e retirar a água parada com a ajuda de uma caneca, não ouvi a campainha, mas os murros que davam na porta. Primeiro, olhei, lá da cozinha mesmo, a não vi ser algum através da estreita janela ao lado da porta. Voltei ao serviço, e voltaram junto os murros. Larguei caneca, água suja e fui ver o que era, afinal, por se tratar de casa de alvenaria, feita de madeira, qualquer pássaro andando no telhado ou cutucando algo lá em cima já era motivo para sons irritantes. Mas não era pássaro, senão Svetlin. Que voltava correndo do carro, pois tinha esquecido de pegar alguma coisa.

Seu inglês era fácil de entender, apesar do forte sotaque, que o fazia pronunciar os “erres” de maneira engraçada. Puxava tanto os “erres” que parecia aquele maluco do Galvão Bueno narrando um jogo de futebol. Logo tratei de ensinar-lhe a dizer “Ronaldinho”, “Rivaldo”, etc. Era assim que, na casa, adotamos como bordão a expressão “call me tomorrrrow”, assim mesmo, puxando o “erre” lá do fundo. Fora isso, era um cara legal, que atrasava nossos pagamentos e que, quando atendia aos nossos telefonemas, respondia, com prestaza, “call me tomorrow”, o que desencadeava numa seqüência interminável, nos dias seguintes, de telefonemas e “call me tomorrows”.

Naquele dia, Svetlin precisava de uma mãozinha. Os outros estudantes latino-americanos que também moravam e trabalhavam em Pineville haviam fugido e agora que a casa estava desocupada, o búlgaro de sorriso engessado precisava fazer a mudança dos poucos móveis, para entregar a casa ao proprietário. Eram apenas algumas mesas e cadeiras, e alguns colchões e estrados, que deveriam ser reacomodados nas outras duas casas de estudantes latino-americanos que haviam restado, sendo uma a minha. Svetlin queria minha ajuda. Sim, o cara que estava com meu pagamento atrasado. E, agora, na minha frente, fazia chantagem me dizendo que iria deixar eu ficar com mais cadeiras.

Tive vontade de responder “call me tomorrow”. Mas somente comentei que eu estava ocupado, pois era a doméstica da vez. Ele insistiu, fez cara de coitado, quebrando, incrivelmente, o gesso de seu sorriso. Até que me ofereceu dinheiro... Pensei em propina, pois para nós, brasileiros, se alguém nos pede um favor e oferece dinheiro em troca, primeiro pensamos que se trata de safadeza. Mas não é. Svetlin disse que era justo me pagar, pois eu estaria trabalhando para a Hospitality, a empresa que “cuidava” de nós lá nos EUA e para a qual ele vendia sua “força”. Aceitei, não sem antes perguntar “how much?”. Ele voltou a engessar aquele sorrisão e respondeu “ask me tomorrow”. E fomos alugar um caminhão lá no centro.



continua...

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