sexta-feira, 19 de junho de 2009

Testemunha

Encanei com uma frase que repousou em meus ouvidos durante essa semana:

"O perigo da vida é sermos a testemunha de uma decaptação, e não a vítima".

Creio que ela, na verdade, saiu de minha própria cabeça, enquanto eu voltava da faculdade.

E, pensando bem, assistir à cena tão forte, in loco, certamente é algo que nos causaria mais dor do que se fossemos quem sofresse a violência.

Mas diria ainda que, se por um lado isto representa um perigo, por outro não nos deixa de ser atrativo. Desejamos sempre ser as vítimas, mas resistimos ao máximo em abrir mão de nossa posição de voyeres...

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Amor colombiano

Custou muito para acreditar que, àquela hora, umas duas da madrugada de uma sexta-feira de inverno, eu estava jogado no chão, cercado por umas três latas de Budweiser, tentando convencer meu mais novo amigo colombiano a não sair pela porta e matar um cara lá da cidade. Eu não tinha condições diante da resistência de Cesar que, fazendo jus ao nome, imprimia uma teimosia digna de qualquer imperador. Com sua faquinha na mão, uma correntinha que segurava a carteira presa ao bolso direito, uns coturnos surrados e sua cara de mafioso reformado, Cesar dava longos goles naquela vodka barata, que naquela tarde havia sido usada como produto de limpeza para se lustrar a mesa da sala.

Eu usava o argumento segundo o qual bastaria qualquer ação estúpida dele para que fosse preso e, pior, se tornasse uma pessoa impedida de retornar aos Estados Unidos para sempre. Naquela hora, senti que, finalmente, conseguira impor-lhe uma condição no mínimo relevante. Aquele país tinha sido escolhido por ele para ser sua nação! Era ali, naquela cultura, que gostaria de viver, trabalhar, ter filhos e casar... Não, casar não! Mas faria dos EUA sua verdadeira pátria, amada e idolatrada cegamente. Enquanto Cesar gritava uns palavrões em espanhol, eu lembrava de quando ele me dissera que em poucos dias tatuaria, no braço esquerdo, o nome “Nevada”. É o estado onde está a cidade de Las Vegas. Cesar morou lá durante uns seis meses e sempre que alguma coisa de Pineville, a cidade onde morávamos no momento, o incomodava – desde as pessoas “burras demais por morarem numa cidade pequena” até “as árvores, retas demais” – ele reavivava Vegas em sua mente e começava a contar histórias da vida noturna da cidade do pecado. Dizia que eu deveria ir para lá com ele, pois em Vegas trabalharíamos nos divertindo e, no fim do dia, repousaríamos numa boate, deitados em divãs repletos de drinks e prostitutas.

Assim que o adverti do perigo de ser expulso do país, Cesar se aquietou. Estava bêbado demais, mas mais bêbado estava de paixão. Lady, sua amiga colombiana, estava lá em cima, no quarto, de portas fechadas, assim como sua cara, ouvindo música. Ela simplesmente não queria mais saber de nós. Ou melhor, de Cesar que, minutos atrás, havia explodido numa cólera de raiva ao saber que sua amada estava mesmo gostando de Omar, um rapaz de Nova York que havia se mudado para Pineville com o primo para tocar um negócio próprio. Sua loja de artigos relacionados ao hip hop era uma boa fachada para aquilo que realmente lhe dava lucros; nos fundos da loja, no único shopping de Alexandria, cidade vizinha a Pineville, Omar guardava os produtos finos, que eram vendidos para poucos endinheirados compradores. Eram camisas, sapatos, cintos, calças, jóias, todos importados da Europa e Ásia, muito caros e guardados com total zelo. Omar, filho de uma brasileira com palestino, sabia falar muito bem o espanhol e o português, tendo um pouco de dificuldade em pronunciar os “erres” deste último idioma. Mas, para mim, era interessante poder conversar em português com um nova-iorquino a respeito da Palestina. E, se a mim era algo inusitado de se ver, ainda mais numa cidade tão mínima como Pineville, para Lady, tratava-se de autêntico presente divino. A colombiana não falava muita coisa além de “hi, how are you doing?”, e mesmo assim, quando seu inglês demonstrava certo avanço, sequer ela podia compreender o que dizia. Seus únicos interlocutores eram eu, que me virava bem com ela, tentando entender seu espanhol; Cesar, por questões óbvias; e Pillow, seu travesseirinho, fiel guardador de segredos.

E é então que aparece Omar. Alto, meio gordo, boa-gente, trílingue, dono de um possante legal que, na Colômbia, seria Ferrari; cantor de hip hop, dono de loja, popular. Lady, finalmente, conquistara a America. Era a “mina” do Omar. Ela podia dizer a sua mãe que estava bem, pois agora alguém lhe dava carona para o trabalho e a buscava; e depois a levava para comer e pagava a conta; e lhe levava ao cinema e lhe pagava a pipoca, a coca e tudo mais. Alguém, que lhe pagava cinco dólares a hora em troca de alguns serviços domésticos, que, no entender de Cesar, eram desculpas para que Omar comesse Lady. Eu, no meio de tudo aquilo, aproveitava a finesse de Omar e não negava um convite sequer para que fosse até sua casa com a “dama”. É claro que com minha presença lá, não demonstravam qualquer possibilidade de ambos estarem juntos, mas eu fazia vista grossa mesmo assim. Jogava vídeo-game e comia arroz. Omar sempre tinha arroz em sua casa, feito no microondas.

Naquela noite, as coisas passaram do limite. É bom dizer que, um ou dois dias antes, Cesar havia confessado a Lady o amor que sentia por ela. Assim, uns dias depois da confissão, nos encontrávamos em casa, cansados de um dia duro de trabalho. Eu, na ocasião, estava largado no sofá, num estado profundo de imobilidade e saco cheio. Os dois vinham numa conversa tranqüila, até que Cesar explodiu. Afinal, como aceitar o fato de uma mulher, que tem o privilégio de ser amada por Cesar Plata de Toledo, recusar uma proposta de namoro assim, sem levar em conta a grandiosidade do acontecimento, a ser: Cesar Plata de Toledo te ama! Ela cometeu a infelicidade de não gostar dele tanto assim. Eram amigos, claro, mas Cesar queria mais que amizade e, não sei se é uma característica da cultura colombiana tamanha sinceridade, confessara querer fazer sexo com ela. Ela ficou sem reação. Foi se levantando, pedindo desculpas e, ao chegar à metade da escadaria que a levaria para o quarto, fez aquela filhadaputagem que só as mulheres sabem fazer com extrema perfeição: pisou em cima. Como se executasse um “fatality”, daqueles de se arrancar a cabeça do adversário, gritou: “sabe o Omar? Tá rolando algo entre eu e ele!”. Aí foi o fim. Na hora levantei e dei um abraço no meu amigo colombiano, que se desmanchava por entre meus braços. Eu assistira a um verdadeiro drama latino.

Essa confirmação, ao contrario do que pensei, não fomentou a face melancólica de Cesar. Muito me emocionou, aliás, e me fez lembrar meu querido Brasil, quando o colombiano se muniu de sua faquinha sem serra e de sua garrafa de vodka, abriu a porta e berrou para que todos soubessem que ele iria matar Omar. Digo que me recordou o Brasil, pois a cena era praticamente uma remontagem do agreste nordestino, ali, diante dos meus olhos, sendo Cesar o cangaceiro. Ele queria fazer justiça com as próprias mãos, pegando o “cabra” na ponta da faca e arrancando seu couro todinho, numa "lambida" só!Eu estava no chão, como disse anteriormente, e, evidentemente, não foram poucos meus esforços para evitar tudo aquilo, mas algo por dentro me forçava a deixá-lo ir em frente, simplesmente porque era tudo muito cômico. Cesar, magro demais, bêbado, com uma faca de passar geléia no pão, segurando a garrafa de plástico cheia de vodka, pronunciando palavras em inglês e espanhol, dizendo que iria até à casa de Omar, filho de brasileira com palestino, que canta rap, matá-lo. Lady apareceu e com uma tranqüilidade irritante (a mesma que impôs na conversa) disse para eu deixar Cesar ir embora. Mas eu simplesmente não podia, pois se ele não matasse Omar, poderia matar qualquer outro, ou mesmo matar a si mesmo. Ela contorceu o rosto e disse “Bueno”. Deixei Cesar livre.

Não se passaram nem vinte minutos, Lady já estava dormindo, eu estava na sala, aflito, e Cesar, esmurrando a porta, querendo entrar. Abri e não acreditei no que acabara de perguntar a ele: “matou quem?”. Felizmente, seus planos homicidas não foram levados adiante. Ele parara no posto de gasolina perto de casa para comprar outra vodka e depois voltou. Estava abalado, fatigado e apaixonado por Lady. Chorou.

Aprendi que nessas horas, quando um amigo perde as estribeiras, a melhor coisa a se fazer é beber com ele, no chão. Convidei-o a jogar-se no assoalho também. E lá, finalmente desarmado de sua faca, Cesar armou-se de rancor contra seu passado. Abaixou o volume do rádio. Desenterrou episódios antigos de sua vida, para justificar seu azar com relação às mulheres. Não se conformava com sua incapacidade de conquistá-las. Queria esforçar-se em entender os motivos que o levaram a sempre fracassar no amor. Nunca, contou-me, havia tido um relacionamento duradouro. Não era virgem, porém, pois sua condição de “rocker”, como dizia, o levara a situações realmente punks, botecos sujos em Bucaramanga, sua cidadezinha na Colômbia. Lá, saía com algumas mulheres, mas sem grandes expectativas de ter um futuro com alguma delas. Seu sonho era viajar pelo mundo com uma companheira ao seu lado. Assim, conheceria diferentes culturas, lugares e pessoas, descobrindo, também, os segredos da pessoa amada. Mas as dificuldades eram enormes; podia ir para onde quisesse, mas sozinho. Cesar, no auge de seus 27 anos, queria alguém para amar. Lady, com seus 22, estava lá em cima, sonhando com Omar.

Passado o susto, as horas e o efeito do álcool, Cesar e eu tínhamos entendido que aquela conversa representara o contrato que havíamos firmado, figurativamente. Ele me dissera coisas muito difíceis de serem ditas e eu as ouvira com atenção. Não havia intenção, da minha parte, consertar a vida do rapaz em poucos minutos. Ninguém poderia fazer isso por ele. Muito menos Lady. Achamos graça. O cara sai lá da Colômbia e vem para os EUA, para sofrer por uma mulher... colombiana. Eu, pelo menos, sofreria por outra que não tivesse nascido no mesmo território que eu. Aventurar-me-ia com uma gringa, e caso ela me rejeitasse, seria algo por si só magnífico em minha vida: levar fora de uma gringa. Mas isso não é o meu caso, e Morgan pode confirmar. Assim como a menina da melodia.

Lá fora

Minha fuga é invertida, vai na contramão.
O desespero me leva a sair daqui.
E não o contrário, e não me esconder atrás de paixão.

Tem que estar sempre lá fora. E o que é estar lá fora?
Para quem não tem referências. É sair.
Para quem obedece sempre aos mesmos estímulos. Alimenta-se de ciúmes. Alucina-se com delírio de outrem.
O que é estar lá fora?
É obedecer a ninguém?
Não. Mas é onde se dá a ação dos desejos. Lá fora. Aqui dentro, não. Aqui o espaço sempre será o da imobilidade.
Saiam! Calem seus medos, pois lá fora é a contradição!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Costume

Costume. Uma palavra que nunca lhe significou absolutamente nada. Mas, embora desse as costas para ela, na sua cabeça era mais do que certo que se tratava de um costume agir daquela maneira toda a vez que dava de cara com aquela menina da sala.

Ela vinha em sua direção, sempre com a intenção de dizer "oi". Mas ele queria sempre mais, muito mais, muuuito mais do que um "oi".

Então, como de costume, na hora em que ela se aproximou, ele disse:

_ Você é mesmo uma vadia!

Ela sorriu, pois (humpf!) era costume dele fazer assim.